BRICS: desdolarização, criptografia e guerra geopolítica

BRICS: desdolarização, criptografia e guerra geopolítica

A Rússia e a China usam todo o seu peso nos BRICS para impulsionar a sua agenda de desdolarização, para fins geopolíticos e financeiros, mas, ao mesmo tempo, o grupo enfrenta problemas que os seus próprios membros são incapazes de resolver e para onde cada um vai. próprio caminho e interesse.

A 20.000ª cimeira anual dos BRICS, realizada na Rússia pela primeira vez em nove anos, abriu ontem com um discurso do presidente russo, Vladimir Putin, seguido de uma reunião a portas fechadas. Esta cimeira, que reunirá mais de 33 participantes de 20 países, incluindo XNUMX altos funcionários do Estado, é um evento histórico que poderá marcar o início de uma nova ordem mundial.

No entanto, a agenda de desdolarização e a crescente tensão entre os membros do bloco colocam desafios significativos e fazem com que especialistas se perguntem sobre o real impacto que esta reunião poderá ter.

Desdolarização: uma meta ambiciosa

Uma das primeiras abordagens desta nova reunião dos BRICS gira em torno da desdolarização, ou seja, da redução da dependência do dólar americano no comércio internacional. A ideia é teoricamente simples: Os BRICS procuram reforçar a cooperação económica e financeira internacional, e a desdolarização é uma estratégia fundamental para o conseguir.

No entanto, a implementação desta iniciativa enfrenta obstáculos significativos, por uma razão simples: Que moeda permitirá que o dólar seja substituído como meio de troca global?

Os BRICS podem impulsionar a desdolarização global?

Perante esta questão, a narrativa dos BRICS sobre a desdolarização renovou o interesse no futuro do dólar americano como moeda de reserva global. Primeiro, porque a aliança começou a testar um sistema de pagamentos sem dólares, o que é visto como um sucesso. Mas mesmo com este avanço, a realidade é muito clara: O dólar continua a ser a moeda mais utilizada nas trocas comerciais internacionais.

Na verdade, embora a Rússia e a China já comercializem utilizando o renmimbi (RMB, a moeda da China), a realidade é que estas mudanças transfronteiriças têm muito pouco impacto a nível global e enfrentam uma situação engraçada: A China e a Rússia realizam estas trocas em moeda local (rublos e renminbi), mas as operações relacionadas com estas trocas são realizadas em dólares, euros ou ouro.. E não é que seja uma exchange de alto valor, pois somente em 2023, a referida exchange atingiu 50 bilhões de dólares e enfrenta uma linha de swap com duras restrições.

Muito controle, pouca confiança

Perante esta situação, alguns economistas, como Paul Krugman, vencedor do Prémio Nobel de Economia, indicam que esta possível desdolarização nada mais é do que "muito barulho por nada". Krugman afirma que o domínio do dólar permanecerá intacto e que não há alternativa real à moeda dos EUA, especialmente porque aqueles que promovem a ideia de desdolarizaçãoTrata-se de uma economia com enormes controlos de capital e um nível mínimo de confiança.

E isto pode ser visto muito claramente nos dados financeiros da China, onde as saídas de capital estrangeiro crescem ano após ano. Por exemplo, até agora, só em 2024, a China sofreu uma saída de capitais que ultrapassou os 12 mil milhões de dólares (dados do Financial Times), mas face a este evento (e no meio de uma crise financeira cada vez mais aguda) o governo chinês representa apenas 4,8 bilhões de dólares. Não se trata apenas de controlo financeiro, mas o próprio governo chinês esconde informações financeiras, Ao mesmo tempo, aperta os controlos e gera burocracia para impedir a saída, algo que leva os investidores a desconfiarem cada vez mais, provocando novas saídas de capitais. A situação não é muito diferente na Rússia, onde o controlo governamental é muito mais forte.

Perante esta situação, analistas como Mohamed El-Erian, antigo vice-diretor do Fundo Monetário Internacional, alertam que o sonho de uma dolarização alternativa está em curso e deve ser levado a sério. El-Erian aponta um fenómeno notável: o preço do ouro registou um aumento de 40% no último ano, embora a inflação tenha diminuído. Esta mudança sugere uma mudança no sentido de activos mais seguros, possivelmente em resposta às tensões geopolíticas e à vulnerabilidade percebida do dólar. Basicamente, El-Erian diz que estamos num momento em que o dólar pode ser perfeitamente deixado de lado, mas para que isso aconteça um ativo seguro, confiável e fácil de usar deve chegar a nível global.

Alternativas à moeda única

Apesar das aspirações de desdolarização, a criação de uma moeda única para os BRICS continua no ar. Vladimir Putin destacou que a ideia de uma moeda única não está madura e que as ações devem ser tomadas de forma gradual e lenta. Os obstáculos incluem a diversidade económica dos países membros, as tensões políticas e a falta de integração semelhante à da União Europeia.

Em vez disso, os BRICS estão a explorar alternativas mais viáveis. Uma opção é desenvolver sistemas de pagamentos integrados que permitam transações diretas entre as moedas nacionais de cada país, aumentando a eficiência e a resistência às sanções internacionais. Outra possibilidade é continuar o comércio utilizando moedas nacionais, o que reduziria a dependência do dólar americano e de outras moedas de reserva.

Este último caso é mais provável, mas não teria qualquer impacto real no dólar e no seu papel como moeda de troca internacional, uma vez que, no final, muitas destas trocas em moedas nacionais teriam a sua produção de actividades relacionadas utilizando o dólar. como moeda de troca.

Tensões geopolíticas: o grande obstáculo à unidade

Contudo, a desdolarização não é a única questão na agenda dos BRICS. As tensões geopolíticas, especialmente entre a Índia e a China, e novas parcerias que podem não ser positivas para o grupo, como a chegada do Irão e da Venezuela, são factores que dificultam a unidade do bloco.

Índia e China: uma disputa no Himalaia

Em primeiro lugar, a tensão geopolítica entre a Índia e a China é um factor crucial que pode mudar a dinâmica do comércio internacional. A Índia, membro do bloco BRICS, manifestou o seu desacordo com a agenda de desdolarização e anunciou que continuará a utilizar o dólar americano. Segundo Subrahmanyam Jaishankar, ministro das Relações Exteriores da Índia, o país não está interessado na desdolarização e continuará a usar o dólar onde quer que seja aceito como forma de pagamento.

Razões? A Índia vê um imenso perigo para o seu crescimento económico, geopolítico e militar na utilização do renminbi como moeda para o comércio com a China e a Rússia, dois dos seus maiores mercados. E tem razões para se sentir em perigo, porque existe actualmente uma disputa fronteiriça entre a Índia e a China na região dos Himalaias, além de uma crescente desconfiança nas ambições económicas e geopolíticas da China. Apesar dos esforços para estabilizar as relações comerciais, a Índia prefere manter o dólar nas suas transações futuras. Isto envia uma mensagem clara sobre o seu compromisso em manter o dólar americano como moeda dominante.

Além disso, a Índia vê neste processo de “desdolarização” uma preparação da China para avançar com as suas ações militares na região, especialmente contra Taiwan, algo que a Índia vê como uma ameaça direta aos seus interesses, uma vez que a Índia depende inteiramente de Taiwan para obter chips de acesso. e tecnologia para seus programas de tecnologia militares e civis.

Irã e Venezuela: relações perigosas

Por outro lado, a ideia de integrar o Irão e a Venezuela no bloco BRICS é outro factor que pode complicar a unidade do grupo. O Irão, que aderiu aos BRICS em Janeiro deste ano, manifestou interesse em reforçar a cooperação económica e política com os membros do bloco. No entanto, a presença do Irão coloca desafios diplomáticos, especialmente no contexto de sanções internacionais e de tensões com o Ocidente.

E aqui entram em jogo as sanções secundárias do Irão, algo que limitou significativamente o comércio dos BRICS com a nação persa. Lembremos que não só o Irão tem sanções que o deixam fora do SWIFT, mas qualquer empresa que faça negócios com o Irão corre o risco de ter sanções automáticas. Na Índia foram especialmente cuidadosos e evitaram negociações, enquanto a Rússia e a China negociam por meio de empresas de pasta y bancos menores, tudo para evitar que sanções secundárias tenham um impacto negativo nas suas economias.

No caso da Venezuela, a história se repete. O país sul-americano estava entre os países que possivelmente fariam parte do clube nas reuniões de janeiro e outubro de 2024, porém, o Brasil votou contra. O problema político, os direitos humanos e as sanções que pesam sobre a Venezuela podem colocar em grave risco a economia do Brasil, por isso votou contra e conseguiu convencer os restantes países do bloco a abster-se.

Tecnologia e finanças: o papel das criptomoedas

Por outro lado, a tecnologia e as finanças desempenham um papel crucial nos planos de desdolarização dos BRICS. A mineração de bitcoins, o desenvolvimento de sistemas de pagamentos digitais e a exploração de moedas digitais do banco central (CBDC) são algumas das iniciativas que estão impulsionando o bloco rumo a um sistema financeiro multipolar.

Fazendas de mineração de Bitcoin nos BRICS

Nesse sentido, a Rússia, por meio do Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF) e da BitRiver, maior mineradora do país, planeja construir fazendas de mineração de Bitcoin nos países do bloco BRICS. O projeto não se concentrará apenas na mineração de Bitcoin, mas também na implementação de tecnologias de inteligência artificial (IA). Igor Runets, CEO da BitRiver, comentou que, juntamente com o RDIF, trabalharão “na criação de uma infraestrutura baseada em mineração”, o que envolve a construção de data centers e o fornecimento dos recursos necessários para implantar e implementar projetos relacionados à IA.

A mineração de Bitcoin na Rússia foi recentemente legalizada (depois de ser proibida e fortemente perseguida), abrindo novas oportunidades para o desenvolvimento do poder computacional e a implementação de tecnologias avançadas. Este projeto visa não apenas aumentar a presença da Rússia na mineração de Bitcoin, mas também no mercado global de poder computacional.

BRICS Pay: um sistema de pagamento sem o dólar

Por outro lado, no âmbito do BRICS Business Forum, foi apresentado oficialmente o BRICS Pay, uma ferramenta de pagamento sem dinheiro usando código QR. Os cartões de demonstração continham 500 rublos que os participantes da reunião usaram para fazer pagamentos em três locais do World Trade Center, em Moscou. Espera-se que o sistema entre em operação ainda este ano para russos no exterior e em 2025 para residentes na Rússia.

O BRICS Pay permitirá pagamentos com Visa, Mastercard e WeChat Pay, e será integrado a uma série de opções que permitem aos países do BRICS ampliar as opções de pagamento para liquidação de bens e serviços. A ideia é depender cada vez menos do dólar, promover a diversificação financeira e reforçar a autonomia económica entre os membros do bloco.

O sistema de desdolarização do BRICS inclui a exploração de moedas digitais e stablecoins. Uma das iniciativas mais notáveis ​​é a Unidade de Conta Comum (Unir), uma stablecoin lastreada em ouro. A nova moeda estará vinculada a uma cesta de reservas subjacente composta por 40% de ouro e 60% de moedas dos países membros do bloco BRICS.

Muito para avançar

A cimeira dos BRICS na Rússia é um evento crucial que pode inaugurar uma nova ordem mundial. A desdolarização, a tecnologia financeira e as tensões geopolíticas são questões centrais que definirão o futuro do bloco. Embora os BRICS tenham objectivos ambiciosos, a implementação destes planos enfrenta desafios significativos, especialmente no contexto de tensões internas e de novas alianças.

O tempo dirá se as iniciativas dos BRICS darão origem a um novo paradigma financeiro ou se o dólar continuará a ser o rei indiscutível das moedas. Contudo, o que é claro é que os BRICS estão a tomar medidas concretas no sentido de um sistema financeiro multipolar e as suas acções terão implicações importantes para o resto do mundo.